quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Poesia

Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos(...)Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste a Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo,
nada me fixa nos caminhos do mundo.


(Murilo Mendes, in: "Poesia")

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos aforacalma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa


*

ERRA UMA VEZ

nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez


*


UM HOMEM COM UMA DOR

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra


*

en la lucha de clases
todas las armas son buenas
piedras
moches
poemas



Paulo Leminski

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Hino a Ísis, séc.III ou IV


Porque eu sou a primeira e a última
Eu sou a venerada e a desprezada
Eu sou a prostituta e a santa
Eu sou a esposa e a virgem
Eu sou a mãe e a filha
Eu sou os braços de minha mãe
Eu sou a estéril, e numerosos são meus filhos
Eu sou a bem-casada e a solteira
Eu sou a que dá à luz e a que jamais procriou
Eu sou a consolação das dores do parto
Eu sou a esposa e o esposo
E foi meu homem quem me criou
Eu sou a mãe do meu pai
Sou a irmã de meu marido
E ele é meu filho rejeitado
RESPEITEM - ME SEMPRE
Porque eu sou a escandalosa e a magnífica

domingo, 27 de dezembro de 2009

"Pode-se, portanto, dizer com justeza que as pessoas que vestem o mundo estão, elas próprias, em farrapos"


Adam Smith

sábado, 26 de dezembro de 2009

A DONA DO RAIO E DO VENTO

O raio de Iansã sou eu
Cegando o aço das armas de quem guerreia
E o vento de Iansã também sou eu
Que Santa Bárbara é santa que me clareia

Eu não conheço rajada de vento
Mais poderosa que a minha paixão
E quando o amor relampeia aqui dentro
Vira um corisco esse meu coração

Eu sou a casa do raio e do vento
Por onde eu passo é zunido é clarão
Porque Iansã desde o meu nascimento
Tornou-se a dona do meu coração

O raio de Iansã sou eu
Cegando o aço das armas de quem guerreia
E o vento de Iansã também sou eu
Que Santa Bárbara é santa que me clareia


Maria Bethânia

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

"Sou um homem, sou um bicho
sou uma mulher
sou a mesa e as cadeiras deste cabaré

Sou o novo, sou o antigos
ou o que não tem tempo
o que sempre esteve vivo
mas nem sempre atento

O que nunca lhe fez falta
o que lhe atormenta e mata

Sou o certo, sou o errado
sou o que divide
o que não tem duas partes
na verdade existe..."


Mauro Kwitko

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

"Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais...

Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.

E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido."


Pablo Neruda

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

"Pelo o que me diz respeito
Eu sou feita de dúvidas
O que é torto, o que é direito
Diante da vida
O que é tido como certo, duvido
E não minto pra mim
Vou montada no meu medo
E mesmo que eu caia
Sou cobaia de mim mesma
No amor e na raiva
Vira e mexe me complico
Reciclo, tô farta, tô forte, tô viva
E só morro no fim
E pra quem anda nos trilhos cuidado com o trem
Eu por mim já descarrilho
E não atendo a ninguém
Só me rendo pelo brilho de quem vai fundo
E mergulha com tudo
Pra dentro de si
Lá do alto do telhado pula quem quiser
Só o gato que é gaiato
Cai de pé..."


Martha Medeiros

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

DOIS - ERRANTE

Dois...
Apenas dois.
Dois seres...
Dois objetos patéticos.
Cursos paralelos
Frente a frente...
...Sempre...
...A se olharem...
Pensar talvez:
“Paralelos que se encontram no infinito...”
No entanto sós por enquanto.
Eternamente dois apenas.


Pablo Neruda

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O Segundo Sexo

"O fato de sermos seres humanos é infinitamente mais importante do que todas as diferenças que nos distinguem uns dos outros".

(Simone de Beauvoir, in: "O segundo sexo")

sábado, 12 de dezembro de 2009

Somos donos de nossos atos,
mas não donos de nossos sentimentos;
Somos culpados pelo que fazemos,
mas não somos culpados pelo que sentimos;
Podemos prometer atos,
mas não podemos prometer sentimentos...
Atos sao pássaros engailoados,
sentimentos são passaros em vôo.


Mário Quintana

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

" Não tenho outra maneira de superar a quotidianeidade alienante senão através de minha práxis histórica em si mesma social, e não individual. Somente na medida em que assumo totalmente minha responsabilidade no jogo desta tensão dramática é que me faço uma presença consciente no mundo. Como tal, não posso aceitar ser mero espectador, mas, pelo contrário, devo buscar meu lugar, o mais humilde, o mais mínimo que seja, no processo de transformação do mundo."


Paulo Freire

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

"Não luto mais daquele modo histérico, entendi que tudo é pó que sobre tudo pousa e recobre, e a seu modo pacifica."


Adélia Prado

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

"Há um tempo em que é preciso
abandonar as roupas usadas e
que já têm a forma de nossos corpos.
Esquecer os nossos caminhos
que levam sempre aos mesmos lugares.
É o tempo da travessia.
E se não ousarmos fazê-la
teremos ficado para sempre
à margem de nós mesmos."


Fernando Pessoa

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Gabriela

Meu cheiro é de cravo
Minha cor de canela
A minha bandeira é verde e amarela(...)
Chega mais perto, moço bonito
Chega mais perto meu raio de sol
A minha casa é um escuro deserto
Mas com você ela é cheia de sol
Molha a tua boca na minha boca
A tua boca é meu doce é meu sal
Mas quem sou eu nesta vida tão louca?
Mais um palhaço no teu carnaval
Casa de sombra vida de monge
Quanta cachaça na minha dor
Volta pra casa, fica comigo
Vem que eu te espero tremendo de amor.


(Antônio Carlos Jobim - Gabriela)

domingo, 6 de dezembro de 2009

Extravio

Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja periferia é o centro?

Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.

Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.

Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.
Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aromaou voz que também não fala.

Ah, ser somente o presente:
esta manhã, esta sala.


Ferreira Gullar

sábado, 5 de dezembro de 2009

Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre um número reduzido, qualquer coisa que aconteça nela não será devido ao acaso, à fatalidade, mas sim à inteligência dos cidadãos. Ninguém estará à janela a olhar enquanto um pequeno grupo se sacrifica, se imola no sacrifício. E não haverá quem esteja à janela emboscado, e que pretenda usufruir do pouco bem que a atividade de um pequeno grupo tenta realizar e afogue a sua desilusão vituperando o sacrificado, porque não conseguiu o seu intento. Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.


Antonio Gramsci

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Química

Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende.


José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

"O justo é tranquilíssimo, o injusto é sempre muito solícito."

*

"O prazer não é um mal em si; mas certos prazeres trazem mais dor do que felicidade."


Epicuro

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

"O amor romântico é como um traje, que, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e, em breve, sob a veste do ideal que formámos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em que o vestimos. O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão. Só o não é quando a desilusão, aceite desde o príncipio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se renove o aspecto da criatura, por eles vestida."



Fernando Pessoa